Recém-chegada na universidade, abrem-se as cortinas de novidades, jalecos, fisiologia, histologia, anatomia. Tudo tão maravilhoso, cheio de conceitos, experiências, pessoas novas, professores - porém bem distante do paciente. Aprendemos sobre o corpo, o funcionamento, as partes... Começamos a nos aproximar dos pacientes, apenas, na cadeira de “Relação médica”, toda sexta-feira pela manhã acompanhando as atividades das Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF). Como objetivo da matéria deveríamos (um grupo de quatro alunos), visitar várias famílias ao longo das aulas e acompanhar uma família específica da periferia para tentar entender alguns hábitos e formar um laço com a finalidade de tentar modificar algumas rotinas e hábitos considerados não saudáveis. O que é geralmente para a maioria, fazer caridade e escrever o relatório no final do semestre.
No cenário da cidade de Rio Grande, saindo do seu tão bem quisto centro com esgoto, água encanada e asfalto, e entrando em comunidades fora do centro, encontrarás a estrada de areia, casebres construídos com “lata-velha” de navios, valetas para correr o esgoto e a água da chuva, falta de coleta de lixo (o qual se amontoa na frente das casas por dias), casas de “chão batido”, às vezes com ou sem água encanada e com ou sem energia elétrica – porém, geralmente cheias de “luz”. Quase sempre éramos bem recebidos e inclusive esperados, por várias famílias que íamos passando, algumas pediam para voltarmos outros dia pois não podiam nos receber, para poderem organizar a casa para os “doutorezinhos”. Mal chegávamos éramos recebidos pelos cachorros, alguns mais calmos outros mais ariscos, mas em geral fazendo festa. A família sorria, abria a porta da casa e deixava nos entrarmos, mesmo que por falta de espaço alguns de nós ficavam do lado de fora, ouvindo a conversa.
A “nossa família” um pouco mais estruturada do que as da redondeza, possuía um pequeno “bolicho” conhecido assim no Rio Grande do Sul, um lugarzinho com uma mesa de sinuca, bebidas alcoólicas, algumas cadeiras, caixas de cerveja viradas para sentar, uma pequena bancada, refrigerantes, chão daqueles de cerâmica antigo e, claro, um pôster de uma mulher segurando uma cerveja qualquer. A entrada era uma pequena porta com algumas cadeiras na frente e bancos de “caixa de cerveja” numa pequena varanda improvisada.
A casa em si ficava atrás do bar, sendo que a parede fazia divisória com o “bolicho”, para o padrão era uma casa grande, meia de material-madeira, chão igual ao do bolicho, uma cozinha/sala um corredorzinho, quarto e banheiro. Simples. Tinha ainda um quintal nos fundos de “terra batida”, cachorros, galinhas, pássaros (engaiolados) e gatos. O quintal fazia caminho para uma outra casa que foi construída depois, esta tinha um quarto, cozinha/sala e um banheiro. Ainda no meio do quintal uma obra se encaminhava que seria a cozinha do bolicho, para fazer batatas-fritas, polentas e petiscos para os frequentadores.
Logo que chegávamos éramos recebidos por uma senhora baixinha, gordinha e sorridente, abrindo as portas do seu lar para nós, apenas alunos do primeiro ano. Antes de chegarmos lá, já tínhamos visto a “pasta da família” para sabermos quais as doenças acometidas na casa. Também sempre chegando um pouco mais tarde aparecia o esposo, depois de fazer as compras para o bolicho, viviam na casa atrás do bolicho apenas os dois. Na casa dos fundos vivia a filha, a neta, o neto e o genro. Quando chegávamos, a reunião era geral sentávamos em volta da mesa da família no meio da sala/cozinha (sempre arrumava-se cadeira para todos) e a Dona da casa nos oferecia um chimarrão. Chegávamos perto do almoço, pois antes poderíamos atrapalhar os hábitos matutinos da família.
Descendente de italianos, na cozinha sempre tinha um bom salame por perto, queijo, muita gordura e poucas frutas e verduras, como relataram para nós jantavam uma comida “forte” com ovos fritos, carne e arroz è noite, quando podiam assavam uma cabeça de porco com bastante batata e gordura. Como “boa aluna”, sentei e comecei a conversar sobre as mazelas da família, hipertensão, diabetes, má alimentação (até a neta de dez anos estava com problemas devido a má alimentação). No primeiro encontro, sentei conversar com o seu João (nome fictício), o pai da família, o centro onde as decisões giravam, claro que com o aval da Dona da casa, sua esposa.
Começamos logo falando da hipertensão e diabetes (doenças que não eram tratadas na casa) com seu João e ele logo respondeu: “mas tu sabe, que eu tenho um problema no joelho e fui para o hospital me consultar, e o médico pediu um raio-X da coluna! Nem fui fazer, a minha dor é no joelho!”, conversamos um pouco sobre o joelho e voltei a falar da hipertensão e diabetes... Logo ele começou “então eu tenho essa dor no joelho que me incomoda muito...” e começou a falar novamente do joelho.
No segundo encontro, estávamos conversando sobre os problemas crônico degenerativos e então... “Mas tu sabe, que eu tenho um problema no joelho e fui para o hospital me consultar, e o médico pediu um raio-X da coluna! Nem fui fazer, a minha dor é no joelho!”. A conversa toda parou no joelho novamente. E nosso blá-blá-blá sobre alimentação e tratamento parou na articulação.
Depois da dupla e inválida insistência, decidimos “mudar a estratégia”, compramos um atlas do corpo humano infantil, com desenhos simples do esqueleto, sistema cardiovascular, nervoso, digestivo. Dessa vez, começamos pelo joelho! Com o sistema esquelético em mãos mostramos que o ser humano tinha ossos durinhos, que sustentavam o corpo e que o joelho (pasmem!) estava interligado com os ossos da perna, bacia e coluna! E falamos mais, que eles nem estava tão distantes assim, os movimentos do joelho eram sustentados inclusive pela coluna! Seu João arregalou o olho e falou “Ah, então eu deveria ter feito o raio-X da coluna?” - quase em uníssono respondemos que sim e ele retrucou “ O que eu faço agora?”, orientamos ele a procurar o médico da UBSF e pedir para repetir o raio-X. E aproveitar para fazer um exame geral, afinal seu João só ia quando as coisas “apertavam” direto para o hospital.
Aproveitando o atlas, apresentamos o sistema cardiovascular e explicamos que o homem é cheio de “canudinhos” que levam sangue para o corpo para dar energia, e distribuir o oxigênio que respiramos. Explicamos que as comidas gordurosas “entupiam os canudinhos” e podiam levar a sérios problemas, porque o corpo ficava sem energia e aí poderia levar até ao infarto. Falamos também que era silencioso e só se notava verdadeiramente muitas vezes quando era tarde demais. Explicamos que a “pressão alta” sobrecarregava o coração que tinha sempre que trabalhar muito para sustentar o corpo, falamos sobre o “inchaço” (aproveitando que o seu João sempre tinha bastante edema nas pernas), falamos também aproveitando o “gancho” sobre o peso que, também, estava sobrecarregando o joelho e o coração.
Seguimos falando do pâncreas, da diabetes, a qual tivemos a seguinte reposta “ah, mas eu tenho diabetes, mas ela tá boa ainda, porque quando eu me corto cicatriza bem!”, conversamos então, sobre o “caminhão do organismo” (a insulina) que “carrega” o açúcar para dentro das células para produzir energia e sobre o pâncreas que cansava de “manter a sua frota” de insulina, e então começava a faltar “energia” para as células. Seguimos a manhã assim, depois da barreira do joelho, conseguimos conversar sobre as doenças da família. Falamos da importância da alimentação e no final presenteamos a família com o atlas, principalmente a neta que adorou as figuras coloridas e estava estudando o corpo humano no colégio. Ficou este nosso pequeno legado e os eternos olhos daquela família, maravilhados com o corpo deles.
Na visita seguinte, foi impossível esconder o sorriso quando adentrei a cozinha/sala e vi sobre a pia um pé de alface gigantesco. A Dona da casa havia emagrecido e estava na frente do fogão. Já de caso pensado, passei algumas semanas organizando um “Livro de receitas saudáveis” com a ajuda de uma tia que trabalha com a alimentação de pessoas no interior, procurando minimizar custos e maximizar qualidade dos alimentos. Ainda, digitei as receitas no computador e coloquei a letra maiúscula, legível e bem grande, para evitar dificuldades da pouca alfabetização e visão.
Logo que sentamos começaram as novidades, a adesão ao tratamento, a mudança na dieta e os quilos perdidos – falaram também que a vida estava melhor, se sentiam mais “leves”. Relataram, ainda, que não estavam mais jantando “forte” e haviam substituído a comida gordurosa por um café com pão. Seu João, não estava em casa, mas nos contaram que havia diminuído o inchaço nas pernas e explicamos que se ele continuasse perdendo peso ficaria mais fácil de os joelhos “trabalharem”, acredito que a mensagem foi repassada. A dona da casa ficou lisonjeada com o livro de receitas para ajudar ela a fazer o almoço em casa. Aproveitamos que estavam apenas as mulheres da casa e falamos sobre a importância do “preventivo”, a dificuldade do câncer de cólon de útero – inclusive, a Dona da casa não fazia o exame há anos. Assim, marcamos um horário com a agente de saúde e ficou combinado que iria começar o tratamento.
Sem saber, acabou esta sendo a minha última visita à família. Ainda quero voltar lá e conversar sobre como “andam as coisas”. Devo comentar que com o tempo, quando eles sabiam que iríamos visitar a casa deles, alguns vizinhos apareciam na casa querendo conhecer e aprender mais sobre o que ocorre no corpo, tirar dúvidas e conversar informalmente com os “doutorezinhos”.
Talvez muitos falarão que foi apenas uma família, algumas pessoas e que no contexto geral isso não faz diferença. Porém, acredito que o rufar das asas de uma borboleta, pode provocar um furacão, que as pequenas mudanças são o primeiro passo para uma grande mudança. Geralmente, os pacientes sabem lhe dizer todos os riscos, todas as formas de tratamento, e sintomas de várias doenças - embora não entendam o real funcionamento daquilo. Frequentemente, quando acompanhamos consultas, ao invés do médico explicar que aquele senhor tem uma cirrose em decorrência da bebida (explicando o que aconteceu com o corpo do paciente, o que o fígado faz, o que ele deixou de fazer e porque é importante tentar parar com o vício), escolhem o caminho mais “fácil”, apenas avisam que tem um “problema no fígado” e o que é pior, muitas vezes condenam os hábitos do paciente, mesmo de forma inconsciente. Mantendo exatamente aquela relação distante, em que o paciente é literalmente “passivo”, ignorando a cultura, as vivências, e os pensamentos daquela pessoa.
Vejo, infelizmente, muito “salto alto” na medicina, inúmeras vezes, centra-se mais a atenção no médico do que na pessoa que está sendo assistida. Importam-se mais com a rapidez do diagnóstico, com o quão bons são na hora de fazer uma cirurgia e o quanto são respeitados pela comunidade médica. Talvez, nesse contexto, seja importante tirar a “armadura” do jaleco branco e saber que os pacientes, não são simplesmente quadros que vamos colocando nossas impressões, fazendo nossos diagnósticos e impondo “nossos” tratamentos. E sim, o ator principal deste grande palco é o paciente e nós, estudantes ou médicos, somos apenas os coadjuvantes daqueles que possuem vida, pensamentos, cultura, tabus, crenças, verdades e joelhos... Apenas, coadjuvantes.
Mayara Floss
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