segunda-feira, 6 de junho de 2011

Anatomia e borboletas


Texto publicado no jornal Glasgow 15

Às vezes a mecanicidade do sistema nos impede de ver além do exposto. Por exemplo, na secção transversal medula espinhal é possível ver uma borboleta da espécie Papilionidae, sendo visível até as raízes dorsais saindo das asas da borboleta.

Frequentemente esquecemos-nos das cortinas que se abrem diante dos nossos olhos. Aprendemos os cornos dorsais, ventrais, sulcos, funículos, fascículos. Porém, não vemos as borboletas. Não vemos o paciente sim os sintomas, sinais, o quão interessante ou banal é o que se desdobra na frente dos nossos olhos. Esquecemos-nos das borboletas.

Afinal, as borboletas são insignificantes frente ao mundo de conhecimento que se desdobra diariamente na faculdade. As provas, os livros, a cobrança e a responsabilidade – elas servem apenas para caracterizar a medula espinhal e não mais do que isso, não importa se passam na nossa frente ou então preferimos pegá-las e alfinetá-las para a exposição de todo o nosso conhecimento.

Os feixes nervosos são mais importantes que as asas e aprendemos a prender nossos pés no chão. Passamos a colecionadores não só de borboletas, mas de diagnósticos, olhares microscópicos, macroscópicos, análises, listas de sintomas. E não sentimos as asas batendo ao nosso redor, ignoramo-las, é mais fácil não ver as borboletas. Não sentir os olhos delas, a busca delas pelos nossos olhos – apenas classificamos.

Já temos que fazer tanto, não? Para que ainda perder nosso tempo olhando ao redor e seguindo as asas, isso é insignificante para o andar da vida. E meus olhos vão se tornando pequenos para ver além da metodologia-aplicação. Porém, às vezes, a borboleta negra turva nossa visão com suas asas e paramos para sentir a vida que pulsa em nós, ao nosso redor e que perdemos o voo daquelas asas - embora a lógica prefira não se envolver, não sentir, não pensar muito nessas “coisas” , é mais fácil.

Facilidade por facilidade, vamos nos tornando apenas jalecos brancos – símbolos de assepsia, limpeza e “superioridade”. Cortamos lentamente nossas asas, deixamos de voar e voltamos a ser apenas lagartas listradas famintas por análises e assustadoras. Impomos medo e despertamos o casulo dos nossos pacientes, para proteger-se da nossa fome.

Embora, tudo pareça muito assustador sempre podemos nos metamorfosear e deixar as asas baterem para que possam plainar suavemente sob a vida. Os ambientes de recuperação e cura estão repletos de lagartas de jaleco branco e acabam convivendo com casulos, retraídos. Depende do profissional-borboleta saber pegar esses casulos e promover a melhora em borboletas que alçaram o voo ou apenas reforçar as paredes do casulo. Precisamos das borboletas, quem sabe podemos começar vendo-as na anatomia e depois todos terão tempo para (re)abrir as próprias asas.
Mayara Floss

3 comentários:

  1. Um texto para refletir..."Cortamos lentamente nossas asas, deixamos de var e voltamos a ser apenas lagartas listradas famintas... " este excerto define muitas situações nas nossas vidas, não apenas nos profissionais de saúde...
    Gostei.
    Um beijinho

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  2. Vida de borboleta transformada em vida de lagarta para que outras borboletas voem...

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  3. Maravilhosa metáfora... Borboletas e casulos, tão íntimos e tão distantes...E todos fios do mesmo tecido - a vida humana. Inspirador.
    Sparvoli

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