quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Entrega


O capitão segurava o leme, num desses arrombos de maus pressentimentos. Quando a maré é muito calma, é porque as nuvens se aproximam. O barco já envelhecido, mas com o casco que sobrevivia ao mar atravessava o final de tarde. Não era exatamente um capitão caricato com barba, perna de pau e papagaio. Mas tinha aquela postura que o oceano dá àqueles que muito viram em suas águas. Quando o mau vento vinha cada fibra de seu ser sabia o que era quebrar as pazes com a imensidão.

O céu preparando-se para deixar a lua chegar sentia no fundo aquela sombra cinza que apagava o brilho das estrelas. A cortina que se tornaria negra no contraste do céu escuro. De tanto se afogar no ar ele já sabia, iria preparar os homens. Não temia as águas, mas seu único medo (aquele que deixa o coração fora do peito como se um buraco estivesse se abrindo) era que uma coisa se perdesse naquela azul.

Para os marujos novatos o mar nunca parecera tão bom, calmo e sereno para navegar. E aquela parte interior que cada um só conhece a sua desdenhava das ordens do capitão. Como previsto o breu e o silêncio que precedem a fúria afundaram-nos em cima da água. Antes de repirar o último fôlego o céu clareou e a água salgada começou aquela dança tenebrosa da tempestade. O som veio logo depois estremecendo cada sentido naqueles que se aventuravam a desafiar o filho de Netuno.

Só os apaixonados entendem as águas revoltosas, apenas esses conseguem preferir o limiar da vida aos pés no chão. Embora, antes temer e voar do que ser eterna raiz na terra. E era esse o grande amor do capitão aquele sentimento infindável que só é possível se sentir olhando nos olhos. O mar eram seus olhos e como todo o grande amor era entregue naquelas ondas, sem medo, exceto por um pedaço seu que deveria chegar a terra.

Quando tudo acontece muito rápido é que o mundo passa devagar. E sem mais nem menos como um cobertor suspenso no ar prestes a tocar a cama o mar abraçou o barco. E aquelas memórias que só voltam quando se sabem preciosas para serem revividas mais um instante apareceram. Lembrava-se do cheiro de sua mãe, da terra firme, da terra mole que virou seu lar, de vários olhos, daqueles que passaram, dos que partiram, de alguns abraços, suspiros, de como foi perder-se, do gosto do sal naqueles mares. Sim, do gosto do sal, porque os sabores mudam conforme a maré e as histórias.

O que não podias desaparecer dos outros humanos era o que carregavas no bolso. E aquela ferocidade só podia ser amor, pois aquele oceano sabia quando seus antigos filhos deveriam voltar para o berço. Ele segurava a sua vida humana que antes estava no bolso em suas mãos porque sabia que seria o seu ser naquele último gesto.

O mesmo silêncio que a precedeu dizia que a tormenta passou, e os atormentados tripulantes se seguravam na insegurança marítima de sua sorte e coração, sem entender o amor daqueles braços de água. O naufrágio é sempre o bojador para os apaixonados, o batizado para aqueles que iriam fazer do mar a sua terra.

Enquanto se lutava contra a morte na superfície o capitão afundava no sal com as mãos abertas com a certeza de que a areia iria carregar até os pés de algum desavisado a sua alma. Não iria negar este último pedido das águas e deixou-se.

Alguns não voltam para a superfície, apenas viram tritão.

Mayara Floss

2 comentários:

  1. Linda estória... Conseguisse botar uma enorme beleza nos minutos finais dessas pobres almas. Simplesmente lindo.

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  2. Olá, Mayara e Fabiano.

    Parabéns mais uma vez pela fusão texto e imagem que sempre encanta aqui neste espaço. Aproveito a oportunidade para desejar um Feliz Natal para os dois!

    Abraços.

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