quinta-feira, 18 de julho de 2013

Febre


Publicado também no blog Rua Balsa das 10 e no blog lesfurg .

Eu já deveria ter escrito este texto há muito tempo, mas só agora decidi escrever. Ele fala de uma experiência absolutamente surpreendente que eu costumo falar quando falo do projeto que eu e um grupo de colegas criamos em 2010 chamado “Liga de Educação em Saúde” com a proposta de adentrar a comunidade e sair um pouco do academicismo universitário, tentar participar das experiências da comunidade. Eu vivenciei esta experiência em 2011 no grupo que realizávamos atividades, uma turma de Educação de Jovens e adultos (EJA), no Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente localizado na comunidade do Campus Carreiros na cidade de Rio Grande, RS.

A Liga de Educação em Saúde, a qual chamamos carinhosamente de “LES”, sempre tentou ao máximo, e com o amadurecimento do projeto criar um ambiente de conversa com a comunidade, uma experiência de trocas, para uma construção conjunta do conhecimento e não uma forma verticalizada com palestras ou os “futuros médicos levando todo o seu conhecimento para a comunidade”, nós queremos participar com a comunidade, a parte mais importante aqui são as preposições: com e não para.

Então em uma das últimas reuniões do ano de 2011 estávamos conversando com um grupo do EJA que já tínhamos criado o vínculo durante todo o ano. Eles pediram para nessa reunião conversarmos sobre “infecções”, sobre o que eram as infecções. E estávamos conversando sobre o que era infecção, como eles tinham vivenciado isso, e logo eu entrei no assunto “febre” comentando que era um dos sinais de infecção.

Enquanto eu comentava sobre isso e todos me olhavam com olhos atentos, uma senhora perguntou para mim abertamente: “Como é isso de febre, o que é febre, nunca entendi isso do termômetro direito”. Então eu decidi perguntar frente aquelas 15 pessoas que eram pais, avós, filhos se eles sabiam usar o termômetro. E pasmem: ninguém sabia. Eram pais que tinham criado filhos, avós que tinham criado pais, e eram filhos também. Eram pessoas que já tinha adoecido, já tinham vivenciado a febre e nenhum sabia como usar um termômetro.

Aí eu consegui explicar como usava, e eles ficaram tão emocionados e felizes. Sabe, usar o termômetro é aquele conhecimento que eu adquiri nem me lembro quando, antes de entrar na universidade e nunca havia me questionado, ou questionado alguém sobre se ele sabia ou não usar um termômetro.

E a minha mente questionava-se muito insistentemente: “O que adianta eu receitar determinado remédio se febre se muitos não sabem usar um termômetro?”. Bom aí começa um dos maiores questionamentos: “porque a medicina é tão distante? Mal compreendemos os nossos pacientes e eles mal nos compreendem”. Não saberem usar um termômetro abriu um horizonte muito grande na minha perspectiva, foram novas caminhos de compreensão. E compreendo o significado indizível de saber utilizar um termômetro com eles.

Saber o que significava a febre que falaram durante tanto tempo para eles e em nenhum momento tentaram compreender com eles o significado desta palavra foi algo simples para quem vê de fora, e muito profundo para quem compreende por dentro. Para mim fica a certeza, que jamais receitarei nada “se febre” sem antes saber e me envolver no universo entre eu e o paciente no significado da febre e do termômetro.

Mayara Floss

Obs.: para quem não conhece a Liga de Educação em Saúde, envio aqui um curta metragem sobre a LES premiado no 12° Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade.

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