domingo, 25 de março de 2012

A araucária

Foto: Fabiano Trichez

Era um desses, que tinha se mudado para a cidade, mais uma barragem construída para cobrir sua pequena terra d’água, tinha o dinheiro para comprar alguns metros de chão na cidade para construir uma casa e viver um pouco com sua família. Vendeu o pingo, a enxada, saiu da terra, embora a terra nunca tenha saído dele.

A única coisa que o fazia lembrar do seu pedaço de chão era sorver o chimarrão. Na cidade não existia noite, as luzes não permitiam ver as estrelas, não existia terra, era um monte de pó e sujeira que não fazia as plantas crescerem, existia asfalto, televisão e várias modernidades que não entendia a utilidade. Sua esposa agora queria liquidificador, batedeira, jogo de panelas teflon que não gruda a sujeira, e tudo que as gôndolas do mercado podiam oferecer, com um preço bom, claro, parcelado em trezentas vezes para caber no bolso do trabalhador. Mas não queria mais saber de galinhas, colher os ovos. E ele segundo todos os vizinhos estava em depressão, quieto, ia ao seu novo trabalho e voltava em silêncio, sem cantar como antigamente as músicas ao voltar de ordenhar as vacas.

O seu silêncio foi virando túmulo e seu único prazer era o chimarrão agora feito no fogão a gás, sem lenha nem fumaça, a chama azul nem parecia que fazia calor. O mel e doçura da sua boca parecia que tinha ido com as abelhas e quando quis comprar um pouco de mel para adoçar a vida amarga, era caro, tinha pote de plástico e gosto de açúcar e não de mel.

Era pedreiro agora, pouco dinheiro e muitas contas, agora queriam até telefone para falar com a comadre Rosinha que ficava ali pertinho, uns tantos passos. Tinha que agradecer a Deus por ter emprego, porque naqueles dias homem da roça era só incomodação. Tinha um monte de conhecimento que não valia nada, sabia usar enxada, plantar na época certa, debulhar o milho para as galinhas, cavalgar, conhecia da lua e das plantações. Não sabia nada dessas tecnologias, só que cada vez mais sentia-se sujo e usava sabonete para se limpar. O rádio alertava de micróbios, problemas do coração e que tinha que se cuidar, mas tudo era muito difícil de entender, sentia saudades da sua querência.

Certo dia voltando do bolicho (que não conseguia chamar de mercado) com queijo e salame, devidamente aprovados pela vigilância porque não adiantava ser limpo tinha que ser seguro, também leite de saquinho! Como todos gostavam de plástico na cidade, desconfiava que por trás daquele leite não tinha nem vaca, parecia água. Um pouco de erva-mate empacotada, nada de roda d’água para preparar a erva. Não que seu pedaço de chão tivesse tantos recursos, mas no campo o homem troca o que produz com os colegas para que todos tenham o que precisam.

Naquele dia, decidiu pegar um caminho diferente, maior, há tempos sentia vontade de caminhar mesmo que pela cidade e na boca da noite saiu campeando a volta, com saudades do cheiro e do vento batendo no rosto do seu interior.

Andou muito e depois de muito andar avistou ao longe, o que estava longe de se pensar. Uma araucária num terreno baldio abraçada pelo sol poente, um alento para o seu coração. Estava certamente elevada entre o concreto e os prédios ao redor, um descampado, chão batido ao seu redor, mas ainda assim uma araucária com seus braços longos e abertos. Largou as poucas compras, pulou a cerca, lembrou das poucas fronteiras, do cheiro de mato, e do valor que tinha o tempo e a vida no seu rincão. Respirou fundo, parecia que pelas narinas entrava as suas lembranças, sentia a sua terra agora embaixo d’água como se estivesse inteira, tocando-lhe os pés, mergulhando no prazer de ser simples.

Aprochegou-se do tronco da araucária sentiu a casca da árvore que ele sabia que se sentia como ele: rodeada de concreto, sufocada pela terra fraca e a fumaça dos carros, pelo barulho do mal-falar entre vizinhos, e pelo grito constante das buzinas ao invés do bem cantar dos passarinhos. Bebia o sereno daquela paisagem, matava a sede da sua boca que andava com a secura amarga da cidade. Estava apaixonado por aquela árvore no meio do seu campo, e via a sua terra naquele chão, as casas viraram pago, o céu tinha estrelas e via cavalos à distância até um cuzco parecia vir para o seu lado, sentia o frescor do campo, era um homem novamente.

Voltou tarde da noite, mas sereno. A mulher contrariada até já imaginava que ele estava traindo-a, como sabia que acontecia com todo homem dali da volta. Tristes, os homens expatriados do seu pedaço de chão procuravam qualquer chinoca para acalmar as vontades. A maioria começava a beber e ficar recordando o que não voltava mais, as mulheres em geral eram mais adaptáveis e conseguiam conviver com a cidade e se seduziam pelos batons bonitos e facilidades culinárias.

Ora pois, ela estava com razão, ele traía-a, visitava todo final de tarde a araucária e muitos que viam pensava que era um louco ao sentar-se na sombra daquela árvore, era indiscreto e sujo para as maneiras-manias da cidade. Ele não se interessava e nem via os olhos dos outros quando entrava naquele lugar. Seus olhos eram campo, tordilhos uma vez e outra cachorros, ouvia os pássaros, sentia o mato e a vida que corria por seus pés. Pedia colo para a araucária que o carregava até um pedaço da noite, quando voltava bêbado de prazer para casa.

Passava o dia pensando no seu novo campo, em como sua nova plantação estava crescendo bem e não conseguia conversar com seus companheiros de serviço que só reclamavam da comida fria ou falavam das mulheres de televisão ou das noites aventuradas. Com o tempo todos tinham esquecido o tato da terra, mas ele guardava o seu segredo, a sua araucária bem aprumada no meio do seu pampa imaginário. Trabalhava melhor, edificava nas obras de concreto o que poderia deliciar-se nos braços da araucária à noite.

Fazia muitos planos para aquela vida dupla de cidade e campo, mas vivia para o campo. A mulher achou por bem mandá-lo para o médico porque seu marido não tava bem das ideias. Mas o médico falou que entendia a saudades do campo e receitou um remedinho que ele não tomou, porque o médico falou que afastava os pensamentos ruins e acalmava a saudades. Ele amava a saudades e não tinha pensamentos ruins, na verdade eram bons, coisa que o pessoal da cidade não entendia.

Via sua esposa vestida simples, as crianças crescendo e correndo fortes, ajudando na lida e vivendo. Via o céu limpo, puro e simples como ele. Não, não era alucinação era a realidade do seu coração. Ali seu sangue e sua vida eram fortes e era abraçado pela araucária a cada dia, era embalado serenamente como são as preocupações do campo.

Certo dia, como um dia qualquer, estava para chegar para ver a sua bem-amada o seu norte. Mas o que encontrou foi uma placa com o desenho de um prédio moderno e horrível, não sabia ler, sentia um resto de movimento do dia. Iam começar uma nova construção daquelas que ele trabalhava, mas nunca iria usufruir. A terra batida revolta, a brita descarregada na frente, a areia e uma pilha de tijolos. Tudo do dia da noite, como sempre deve ser na cidade, porque os cidadãos não suportam o tempo.

Saiu correndo, o terreno estava cercado de placas de madeira coloridas estampadas mostrando o novo projeto de descriação. As placas não o impediram a sua passagem e para a mais nova construção. Ele pedreiro abriu um caminho e correu para o seu desatino para o lugar onde ficava o seu coração. Sentiu o cheiro da terra suja, do maldizer, da caçamba que havia revirado a sua terra, o seu chão, mas ao longe ainda via sua amada com os braços elevados e sentiu no chão o tronco serrado do seu coração.

O peito rasgando, olhava ao seu arredor e via tudo alagado, mergulhava do desassossego e na sua alma simples, não entendia porque tanta destruição. Chorou e sentiu-se desolado. Sentiu a casca na sua pele e a seiva que escorria era como seu sangue e lágrimas espalhando-se pelo chão. Cansaram ele que tentava conciliação com o campo a cidade e o seu coração.

Voltou para casa, agora como um cidadão da cidade, tinham matado sua alma de campo. O chimarrão era só qualquer bebida e ele foi procurar, agora sim, aconchego com os amigos. Adoeceu, mas amou muitas mulheres que ele nem sentia, bebeu muitos copos de bebida e riu sem saber porque, mas não de alegria. Chegava em casa com o seu ordenado e dava para a mulher que começou a costurar para ajudar a se sustentar. Comia mas não saboreava, odiava tudo, agredia tudo, mas nada o sustentava.

Seguia as regras, como o produto de uma fábrica, porque se esqueceu suas raízes, ele havia sido cortado como a araucária, havia sido podado, morto, tinha morrido. Nenhum amor poderia ser tão fatal.

Perdeu-se ainda mais, quando viu seu mais novo local de emprego, que deveria agradecer por ter trabalho. Morreu um pouco mais, embora ainda teimava em viver. Agora fazia o caminho das tardes, da sua antiga vida por outro motivo. Aquele local agora era o seu destino. Construiu, ergueu, edificou no lugar do seu amor, no seu pampa, na sua querência o mais novo amontoado de casas, o mais novo edifício dos arredores. Decidido era o melhor trabalhador apesar da vida dupla, ganhava bonificações por estar edificando e destruindo-se, fazia por raiva, aprendeu a amar o ódio que sentia, e construiu ali até o fim.

A estrutura, as garagens, os vinte andares, as portas, as janelas, o teto e o chão, cada pedaço com a sua mão. Elevou cada pedaço de si naquele mundo de concreto, rebocou e fez os acabamentos arranjou e fez daquela uma obra bonita que arranhava a sua garganta e sufocava o seu ser.

E mesmo sem saber ler, quando a obra ficou pronta e terminou de morrer, viu o desenho de uma araucária e esqueceu-se do seu bem-querer. Acabou com o amor que sentia, terminou o mal que o comia, porque agora nem homem mais poderia ser. Não conseguiu nem chorar nem sorrir era apenas o seu corpo mecânico para o mecanicismo da cidade.

E para os que se dizem mais entendidos bem ali estava escrito logo abaixo do desenho da árvore “Condomínio Araucária, lugar para bem viver”. Ironia? Não, apenas concreto.

Mayara Floss

2 comentários:

  1. Como alguém que escrevo uma "coisa" dessas precisa de coragem para por alguns exemplares de um livro de sua autoria para vender? Simplesmente não entendo :)

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  2. Bonito o texto e a transparência da Araucária

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