sábado, 22 de setembro de 2012

Capítulos médicos da universidade I – Humanidade


"Se você faz o que sempre fez, você obterá o que você sempre obteve. " -  Anthony Robbins
Muitas vezes a parte mais humana da medicina é o discurso. Faz muito tempo que quero escrever este texto, talvez só uma madrugada de chuva e insônia poderia me dar a combinação perfeita, e essa noite chegou e talvez fique aqui escrita por muito tempo.

Já faz cerca de um ano, eu em meu jaleco branco, cabelo amarrado, estetoscópio no pescoço, pasta no ombro, prancheta na mão – uma aluna de medicina do segundo ano na aula de semiologia. Estávamos no hospital de cardiologia, depois de fazermos a história e examinarmos uma paciente o professor chamou-nos. Começou a falar de um caso muito raro, um paciente com uma cardiopatia difícil de aparecer nos plantões. Na verdade já tinham me falado deste paciente, outros alunos que já haviam examinado ele durante o plantão noturno, e outros que já haviam examinado pela manhã. Era um caso realmente fantástico, “de livro”.

Meu grupo estava ansioso por inspecionar, palpar, percutir, auscultar, aferir, organizar, sintetizar, examinar, descobrir, diagnosticar... Vi colega por colega meu fazer todos os passos, porém no meio de toda aquela ciência, comecei a observar o paciente, não como uma futura médica, mas como uma pessoa – sem esperar ver sinais e sintomas. Ele sem camisa, sentado, seguindo todos os passos de forma cooperativa, depois de cada colega meu examinar e mal dar um “tapinha” em seus ombros agradecendo, ele sorria.

Comecei a observar o sorriso, ele era negro, jovem, sorridente, compreensivo – porém, notei as olheiras, o cansaço, a magreza, a respiração profunda. Como seria estar envolto de vários alunos de medicina, professores, médicos, enfermeiras e afins.  Ele não parecia assustado, porém tinha algo angustiante entre eu e ele.

Um exército de jalecos e estetoscópios aproximava-se e partia, muitas pessoas examinaram ele. Percebi que fui me deixando para trás, até que chegou a minha vez. Quando me aproximei, falei em um suspiro: - Já estamos terminando, sou a última -. Ele apenas sorriu e olhou para baixo, como tinha feito com todos os meus colegas. Examinei.

Quando terminei, chamei-o pelo nome e pedi se ele gostaria de ouvir o que tanto ouvíamos no seu coração. De repente ele sorriu, mas foi um sorriso novo. Ele concordou com a cabeça. Eu procurei um foco cardíaco segurei no peito dele e coloquei o estetoscópio nas orelhas dele. Ele abaixou a cabeça e prestou atenção, ficou todo o tempo escutando-se.

Hoje, queremos nos conectar sem vínculo, sentir sem envolver-se, cuidar sem abraçar. Será que somos solúveis e instantâneos que não podemos segurar a mão de uma outra pessoa. Quantas vezes analisamos ? Quantas vezes nos analisamos? Quantas vezes só cumprimos o protocolo? A medicina é incrível, com o passar do tempo o tato muda, os olhos mudam, os ouvidos, o olfato muda – nós mudamos, e espero poder me reconhecer no espelho.

Poucos minutos depois, senti o professor tocando minhas costas, chamando para sair do quarto para fazermos a discussão, com uma certa pressa e muito incômodo dos meus colegas. Percebendo, ele levantou os olhos cheios úmidos. Havia um brilho e um sorriso. Era como se nossos olhos tivessem ficados conectados , suspensos, cúmplices – agora ele podia ter ouvido o que tanto o examinavam.
Ele me abraçou e me agradeceu, de uma forma profunda e sincera. Nesses momentos exatamente humanos da nossa existência. Deixei meus colegas partirem, auxiliei-o a colocar sua camisa e me despedi, ele sorriu novamente, era diferente.

Quando fechei a porta, estavam todos apavorados comigo, avisando-me para eu ser cautelosa, para eu higienizar meu estetoscópio, aproveitar o tempo da aula, que eu não podia ter essa postura, e etc. Isso não fez nenhuma diferença, estava envolta por uma nuvem de consciência e com um soluço sem lágrimas preso a garganta em silêncio. Segui a aula, segui os dias, estava no hospital quando ele deu alta e ele veio e apertou minha mão e sorriu. O paciente é um universo, como diria um professor.

Mayara Floss

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Me disseram que o mundo ia acabar


Sabe me disseram que o mundo ia acabar
Para mim pareceu até intriga popular
Me falaram de um tal de ciclone
E até de um navio que decidiu se navegar
Me falaram de festa e saiu até no jornal
O apocalipse, o grande drama, o final
Mas daí você me vem
Com cervejas e amor
Qualquer desculpa
para comemorar a nossa dor
Liga para o pai, a mãe,  e o avô
E manda uma boa lembrança
Deseje feliz aniversário
Amo vocês e tomem cuidado
Mas o telefone nem funciona!
E você tem prova na próxima semana
Quem sabe um dia o Rio Grande vire mar
E não sobre história para contar
Então coloca uma música boa no rádio
E me dá um beijo apertado
Que eu preciso de trilha sonora para o meu fim
Ainda vou ter que fazer  meu último poema
Para quem sabe um ET me encontrar
Espero que dê tempo de compartilhar
E lá se vai o meu calendário
E eu vou morrer sem conhecer
O meu itinerário
Tenho ainda umas parcelas para pagar?
Espero que o meu cartão de crédito
também vá se afogar
Porque me disseram que o mundo ia acabar


Mayara Floss

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Café solúvel e instantâneo


A relações hoje são como o café solúvel e instantâneo. Solúveis porque se desfazem na solubilidade moderna, intensas e fortes como café, mas essencialmente instantâneas. Também podem ser amargas ou até doces, serem incrementadas com outros sabores, mas todas deixam-se com um certo gosto no paladar. Além de tudo o café é líquido, afinal nesses tempos nada de relações sólidas. Aliás, liquidificaram as sensações e você sente uma mistura de tudo, para não aprender a aproximar-se aos poucos, a sentir aquela pessoa, vem tudo de uma vez como o vigor da cafeína. São igualmente estimulantes e viciantes, porém podem te dar azia, (afinal melhor é não relacionar-se e quanto mais rápido, fugaz, - melhor). Você garante que sentiu o sabor mas não deixou tempo para terminar a xícara, ou para acompanhar até uma próxima cafeteria. Quando vês já passou e já queres um novo sabor, porque sua língua também não tolera a solidão. Ainda, deve ser fácil e prático, porque não temos horas para dispender nesse caminho. Melhor ainda se bem industrializado, com muito pó no rosto e pouco desgosto, ainda tem o preço, um café é barato para todo o bolso. E o barista do tempo moderno deixa tudo cada vez mais expresso, mais curto e pingado, ou dilui tudo em um café americano porque são poucos que querem poder saborear o grão e apaixonar-se sem pressa ou a expressar-se além cafeína.

Mayara Floss

domingo, 16 de setembro de 2012

Samba


Eu não sei sambar
Embora saiba que quando toco
Nas tuas cordas minha guitarra
Com as pontas dos dedos
Desenhando em ti os passos
De meu desejo
Enrosco-me nos acordes
E arpejos de teu som
De violão
E sei que minha alma dança
Em teu braço
e tocamos nossos corpos
Na madeira desse compasso
Como dois apaixonados
Dançamos abraçados
Em baixo desse teu tampo vibramos
E quando nos afastamos
Sabemos que não tem sentido
Sambar sozinho

Mayara Floss

sábado, 15 de setembro de 2012

Apagão




De repente eu estava torcendo
Para cair a luz
Enquanto a chuva batia na minha janela
Torcia para poder ficar eu, a chuva e a lua
(e talvez uma vela)
Tamborilando no tempo
No silêncio escuro da cidade
Afinal, nenhuma tempestade
É como meu interior
E nada como tocar um temporal
E sentir essa simpatia natural
Escorrendo em meu corpo
E toda a realidade
É apenas um lampejo de um trovão
Clareando minha alma
Nessa afinidade
Líquida de tempo e canção

Mayara Floss

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

“Eu não posso perder”


     A vida é uma linha tênue que liga-nos em sangue e luta. Cada batalha interior, dentro das paredes do que vivemos torna-se um pequeno triunfo de existir. Somos anestesiados pelas horas, pelo dia-a-dia, mas a dor é independente do poder da anestesia, ela corta, queima ou dói em pontadas, e nunca estamos preparados.
    Era madrugada, ela tinha uma tatuagem no pé, os cabelos curtos e pitados, olhos verdes, o corpo magro, as unhas pintadas de vermelho, um resto de maquiagem na face, era pequena. Enquanto adentrava o Centro Cirúrgico já estava em torpor, submersa nos minutos anteriores. A equipe se preparava, naquele automatismo rápido e preciso (dentro dos limites humanos), alguns gritos e alguns silêncios. Uma enfermeira lia a história da paciente enquanto ajustavam as luvas. Ajustava-se a luz, terminava de aprontar a instrumentação. Silêncio.
     O tempo parecia anestesiar os minutos, logo todo o nervosismo passou, era anatomia, era cirurgia. Doía mesmo sem consciência. Enquanto a experiência parece justificar todo o método da equipe, consciente ou não ela deixa rolar uma lágrima. O vermelho, o cheiro, o soluço sem choro estavam na sala. Há sangue correndo, provando o quão delicada é a vida. Às vezes o silêncio parece tocar uma doce música triste, enquanto ele é interrompido por algumas palavras como “pinça” - ele vai afinando o futuro.
Ela sonha, com os dinossauros de plásticos que havia comprado, imaginando eles jogados chão, sonha com o quarto, o guarda-roupa, o assoalho, o cheiro. Ela vive aquela ausência presente da sua imaginação.
    Depois de algumas bolsas de sangue e de oscilação, ela sente aquele momento em que o coração parece parar de bater, embora ele continue sem perder o ritmo.  Talvez seja hora de acordar. O sono artificial é como uma nuvem que se dissipa rapidamente. E logo começam a chamar pelo nome, a dar leves tapinhas no rosto. As respostas iniciais são pequenos resmungos. A equipe tinha aquela dor de rasgar a alma, mas que já não sentiam mais, pois tinham se acostumado.
    Demorou para ela despertar do sonho, já estava na sala de recuperação, a boca e a lágrima secas. Enquanto piscava os olhos, começou a falar repetidamente, primeiro ninguém compreendia. Depois com o tempo e a doce música triste do silêncio as frases repetidas começaram a ficar claras e com a mão no ventre dizia: “Eu não posso perder”. 

Mayara Floss

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Rádio Relógio



“Todas  as  madrugadas  ligava  o  rádio  emprestado  por  uma colega  de  moradia,  Maria  da  Penha,  ligava  bem  baixinho  para  não acordar  as  outras,  ligava  invariavelmente  para  a  Rádio  Relógio,  que dava ―hora certa e cultura‖, e nenhuma música, só pingava em som gotas que caem – cada gota de minuto que passava.” – Clarice Lispector em “A hora da estrela”

Que medo das horas pingando
No relógio.
Para facilitar, talvez seja só partir
(e fechar a porta)

Mas deixes o rádio tocando
Para ver se as paredes ouvem a música
que tanto gostas

Para sentir se elas escutam o gosto
da tua presença
Enquanto o relógio goteja
Mesmo com o corpo e o tato distantes
(Contando o tempo por ti)

Equalizando essa frequência
de ausência
Balançando os ponteiros

Partas, mas sem esqueceres
Que toda a programação do rádio
- Diz as horas.

Mayara Floss
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