segunda-feira, 27 de junho de 2011

Olhos nos olhos

Texto publicado no Cardápio Literário do 11° CBMFC organizado pela SBMFC

Invariavelmente, nós médicos (e futuros), somos privilegiados. Não pelo prestígio social, mas por adentrar na casa e na vida das pessoas. Isso não significa erguer-se em um pedestal e olhar para baixo, porém sim, olhar na altura dos olhos. Na verdade, não somos mais privilegiados do que a Maria, o João, o José, e outros tantos que conhecemos. Quantas vezes, a nossa mão conduz e quantas vezes confia-se e abre-se o fantástico livro da vida dos pacientes. Quantos olhares de esperança podem ser acendidos ou apagados por nossas palavras.

Vivemos com os dois olhos na cadeira no canto do corredor do hospital, sabemos da “indesejada das gentes” que nos visita no consultório, nos plantões, nas unidades de saúde. Inúmeras vezes, injusta ela carrega no colo nossos pacientes e fecha o livro de histórias. Ainda, rouba os livros da nossa estante, abraça nossos familiares e os leva, cutucando o nosso conhecimento e mostrando o quanto pesa as nossas amarras, quando tentamos nos levantar.

Somos espectadores da história, mas criamos expectativa. Inquiridores da vida sabemos sobre o amor e os olhos. A oftalmologia enxerga muito, embora os olhos passem da anatomia e fisiopatologia. Inevitável, sim, falar da medicina, sem falar das doenças, da saúde, dos exames. Porém, mais inevitável é não falar sobre os olhos, as janelas da alma, quantas vezes os nossos olhos apenas adentram a enfermaria e prontamente definem um diagnóstico.

Quantas vezes! Não chegamos a uma casa, visitar um paciente e nossos olhos são pequenos para ver. Quantas vezes senti meu coração saindo do peito, e nada de sinais semiológicos (nem psiquiátricos), apenas um soluço sem lágrimas para aqueles que vivi um pouco da vida deles. Quantas histórias ouvi, quantas perguntas eu fiz, quanto de mim ficou e quanto dos olhos deles ficaram.

Independente da história, do tão quisto “nível social” os olhos pacientes são os mesmos, embora com nuances. Quantos olhos passaram por mim e quantos eu realmente enxerguei. Incrível, como nos olhos, encontramos as memórias. Aqueles que cruzam por nós, lembram do nosso nome, das nossas mãos e dos nossos olhos – basta um olhar para provar.

De tantas decisões e olhos que passam por nós invariavelmente, por maior que seja o esforço, erramos. Errar, aliás, é humano. E por mais que tentem nos distanciar os olhos são os mesmos. E se a cegueira comeu por dentro, nada além da anatomia e dos acertos passaram pelos olhos. Os olhos são o tato da alma, eles percutem, apalpam e examinam. Independente do local. Quantos jalecos troquei e quantos eu deixei de lado, afinal a armadura dos olhos pode estar na brancura do tecido.

E as famílias pelas quais passei, entrei, participei. Dividiram seus olhares duvidosos, seus anseios e seu calor. Quantas histórias sem querer, quanto ouvido tive que ter (e tenho). E não me fale de pouca experiência, porque meus olhos apenas viram. E virão outros olhos. Embora, seja eternamente inexperiente.

E as lágrimas? Rios da alma que correm, e não falo apenas das lágrimas daqueles que por mim passaram, falo do meu choro – que tanto falam em esconder. Porém, as margens do rio que corre em meu rosto são humanas e embora com um tanto de saber, meus olhos são poucos para ver, e de olhos, cegueira e lágrimas – pouco sei. Embora saiba, de quantos olhos de dor eu vi, de pais sem filhos, filhos que perderam os pais, de pessoas com prognósticos ruins e daqueles olhos de dor, sem saber. Daqueles olhos silenciosos, quietos, submissos – que sinto a vida e a vida sente em mim.

Estou cansada de ouvir (e não ver) teorias sobre a distância que devemos manter, de não voltar, de não querer saber o que aconteceu. Estou cansada daqueles que “pavoneiam” todo o seu conhecimento e cegueira. De vangloriar-se da relação médico-paciente, sem se envolver! De reclamar, reduzir quem fica perto do paciente, quem se preocupa com a família, como vão passar os dias, e não apenas com a fisiopatologia. Estou cansada de olhos que não enxergam.
Descrever a medicina, é diminuí-la. E não por colocá-la em um patamar acima das outras profissões. É por não ter palavras, e apenas olhos para ver. E de tudo, olhos nos olhos é apenas o que posso dizer.

Mayara Floss

domingo, 26 de junho de 2011

Sobre palcos e joelhos – a medicina fora dos corredores do hospital

Texto publicado no Cardápio Literário do 11° CBMFC organizado pela SBMFC

Recém-chegada na universidade, abrem-se as cortinas de novidades, jalecos, fisiologia, histologia, anatomia. Tudo tão maravilhoso, cheio de conceitos, experiências, pessoas novas, professores - porém bem distante do paciente. Aprendemos sobre o corpo, o funcionamento, as partes... Começamos a nos aproximar dos pacientes, apenas, na cadeira de “Relação médica”, toda sexta-feira pela manhã acompanhando as atividades das Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF). Como objetivo da matéria deveríamos (um grupo de quatro alunos), visitar várias famílias ao longo das aulas e acompanhar uma família específica da periferia para tentar entender alguns hábitos e formar um laço com a finalidade de tentar modificar algumas rotinas e hábitos considerados não saudáveis. O que é geralmente para a maioria, fazer caridade e escrever o relatório no final do semestre.

No cenário da cidade de Rio Grande, saindo do seu tão bem quisto centro com esgoto, água encanada e asfalto, e entrando em comunidades fora do centro, encontrarás a estrada de areia, casebres construídos com “lata-velha” de navios, valetas para correr o esgoto e a água da chuva, falta de coleta de lixo (o qual se amontoa na frente das casas por dias), casas de “chão batido”, às vezes com ou sem água encanada e com ou sem energia elétrica – porém, geralmente cheias de “luz”. Quase sempre éramos bem recebidos e inclusive esperados, por várias famílias que íamos passando, algumas pediam para voltarmos outros dia pois não podiam nos receber, para poderem organizar a casa para os “doutorezinhos”. Mal chegávamos éramos recebidos pelos cachorros, alguns mais calmos outros mais ariscos, mas em geral fazendo festa. A família sorria, abria a porta da casa e deixava nos entrarmos, mesmo que por falta de espaço alguns de nós ficavam do lado de fora, ouvindo a conversa.

A “nossa família” um pouco mais estruturada do que as da redondeza, possuía um pequeno “bolicho” conhecido assim no Rio Grande do Sul, um lugarzinho com uma mesa de sinuca, bebidas alcoólicas, algumas cadeiras, caixas de cerveja viradas para sentar, uma pequena bancada, refrigerantes, chão daqueles de cerâmica antigo e, claro, um pôster de uma mulher segurando uma cerveja qualquer. A entrada era uma pequena porta com algumas cadeiras na frente e bancos de “caixa de cerveja” numa pequena varanda improvisada.

A casa em si ficava atrás do bar, sendo que a parede fazia divisória com o “bolicho”, para o padrão era uma casa grande, meia de material-madeira, chão igual ao do bolicho, uma cozinha/sala um corredorzinho, quarto e banheiro. Simples. Tinha ainda um quintal nos fundos de “terra batida”, cachorros, galinhas, pássaros (engaiolados) e gatos. O quintal fazia caminho para uma outra casa que foi construída depois, esta tinha um quarto, cozinha/sala e um banheiro. Ainda no meio do quintal uma obra se encaminhava que seria a cozinha do bolicho, para fazer batatas-fritas, polentas e petiscos para os frequentadores.

Logo que chegávamos éramos recebidos por uma senhora baixinha, gordinha e sorridente, abrindo as portas do seu lar para nós, apenas alunos do primeiro ano. Antes de chegarmos lá, já tínhamos visto a “pasta da família” para sabermos quais as doenças acometidas na casa. Também sempre chegando um pouco mais tarde aparecia o esposo, depois de fazer as compras para o bolicho, viviam na casa atrás do bolicho apenas os dois. Na casa dos fundos vivia a filha, a neta, o neto e o genro. Quando chegávamos, a reunião era geral sentávamos em volta da mesa da família no meio da sala/cozinha (sempre arrumava-se cadeira para todos) e a Dona da casa nos oferecia um chimarrão. Chegávamos perto do almoço, pois antes poderíamos atrapalhar os hábitos matutinos da família.

Descendente de italianos, na cozinha sempre tinha um bom salame por perto, queijo, muita gordura e poucas frutas e verduras, como relataram para nós jantavam uma comida “forte” com ovos fritos, carne e arroz è noite, quando podiam assavam uma cabeça de porco com bastante batata e gordura. Como “boa aluna”, sentei e comecei a conversar sobre as mazelas da família, hipertensão, diabetes, má alimentação (até a neta de dez anos estava com problemas devido a má alimentação). No primeiro encontro, sentei conversar com o seu João (nome fictício), o pai da família, o centro onde as decisões giravam, claro que com o aval da Dona da casa, sua esposa.

Começamos logo falando da hipertensão e diabetes (doenças que não eram tratadas na casa) com seu João e ele logo respondeu: “mas tu sabe, que eu tenho um problema no joelho e fui para o hospital me consultar, e o médico pediu um raio-X da coluna! Nem fui fazer, a minha dor é no joelho!”, conversamos um pouco sobre o joelho e voltei a falar da hipertensão e diabetes... Logo ele começou “então eu tenho essa dor no joelho que me incomoda muito...” e começou a falar novamente do joelho.

No segundo encontro, estávamos conversando sobre os problemas crônico degenerativos e então... “Mas tu sabe, que eu tenho um problema no joelho e fui para o hospital me consultar, e o médico pediu um raio-X da coluna! Nem fui fazer, a minha dor é no joelho!”. A conversa toda parou no joelho novamente. E nosso blá-blá-blá sobre alimentação e tratamento parou na articulação.

Depois da dupla e inválida insistência, decidimos “mudar a estratégia”, compramos um atlas do corpo humano infantil, com desenhos simples do esqueleto, sistema cardiovascular, nervoso, digestivo. Dessa vez, começamos pelo joelho! Com o sistema esquelético em mãos mostramos que o ser humano tinha ossos durinhos, que sustentavam o corpo e que o joelho (pasmem!) estava interligado com os ossos da perna, bacia e coluna! E falamos mais, que eles nem estava tão distantes assim, os movimentos do joelho eram sustentados inclusive pela coluna! Seu João arregalou o olho e falou “Ah, então eu deveria ter feito o raio-X da coluna?” - quase em uníssono respondemos que sim e ele retrucou “ O que eu faço agora?”, orientamos ele a procurar o médico da UBSF e pedir para repetir o raio-X. E aproveitar para fazer um exame geral, afinal seu João só ia quando as coisas “apertavam” direto para o hospital.

Aproveitando o atlas, apresentamos o sistema cardiovascular e explicamos que o homem é cheio de “canudinhos” que levam sangue para o corpo para dar energia, e distribuir o oxigênio que respiramos. Explicamos que as comidas gordurosas “entupiam os canudinhos” e podiam levar a sérios problemas, porque o corpo ficava sem energia e aí poderia levar até ao infarto. Falamos também que era silencioso e só se notava verdadeiramente muitas vezes quando era tarde demais. Explicamos que a “pressão alta” sobrecarregava o coração que tinha sempre que trabalhar muito para sustentar o corpo, falamos sobre o “inchaço” (aproveitando que o seu João sempre tinha bastante edema nas pernas), falamos também aproveitando o “gancho” sobre o peso que, também, estava sobrecarregando o joelho e o coração.

Seguimos falando do pâncreas, da diabetes, a qual tivemos a seguinte reposta “ah, mas eu tenho diabetes, mas ela tá boa ainda, porque quando eu me corto cicatriza bem!”, conversamos então, sobre o “caminhão do organismo” (a insulina) que “carrega” o açúcar para dentro das células para produzir energia e sobre o pâncreas que cansava de “manter a sua frota” de insulina, e então começava a faltar “energia” para as células. Seguimos a manhã assim, depois da barreira do joelho, conseguimos conversar sobre as doenças da família. Falamos da importância da alimentação e no final presenteamos a família com o atlas, principalmente a neta que adorou as figuras coloridas e estava estudando o corpo humano no colégio. Ficou este nosso pequeno legado e os eternos olhos daquela família, maravilhados com o corpo deles.

Na visita seguinte, foi impossível esconder o sorriso quando adentrei a cozinha/sala e vi sobre a pia um pé de alface gigantesco. A Dona da casa havia emagrecido e estava na frente do fogão. Já de caso pensado, passei algumas semanas organizando um “Livro de receitas saudáveis” com a ajuda de uma tia que trabalha com a alimentação de pessoas no interior, procurando minimizar custos e maximizar qualidade dos alimentos. Ainda, digitei as receitas no computador e coloquei a letra maiúscula, legível e bem grande, para evitar dificuldades da pouca alfabetização e visão.

Logo que sentamos começaram as novidades, a adesão ao tratamento, a mudança na dieta e os quilos perdidos – falaram também que a vida estava melhor, se sentiam mais “leves”. Relataram, ainda, que não estavam mais jantando “forte” e haviam substituído a comida gordurosa por um café com pão. Seu João, não estava em casa, mas nos contaram que havia diminuído o inchaço nas pernas e explicamos que se ele continuasse perdendo peso ficaria mais fácil de os joelhos “trabalharem”, acredito que a mensagem foi repassada. A dona da casa ficou lisonjeada com o livro de receitas para ajudar ela a fazer o almoço em casa. Aproveitamos que estavam apenas as mulheres da casa e falamos sobre a importância do “preventivo”, a dificuldade do câncer de cólon de útero – inclusive, a Dona da casa não fazia o exame há anos. Assim, marcamos um horário com a agente de saúde e ficou combinado que iria começar o tratamento.

Sem saber, acabou esta sendo a minha última visita à família. Ainda quero voltar lá e conversar sobre como “andam as coisas”. Devo comentar que com o tempo, quando eles sabiam que iríamos visitar a casa deles, alguns vizinhos apareciam na casa querendo conhecer e aprender mais sobre o que ocorre no corpo, tirar dúvidas e conversar informalmente com os “doutorezinhos”.

Talvez muitos falarão que foi apenas uma família, algumas pessoas e que no contexto geral isso não faz diferença. Porém, acredito que o rufar das asas de uma borboleta, pode provocar um furacão, que as pequenas mudanças são o primeiro passo para uma grande mudança. Geralmente, os pacientes sabem lhe dizer todos os riscos, todas as formas de tratamento, e sintomas de várias doenças - embora não entendam o real funcionamento daquilo. Frequentemente, quando acompanhamos consultas, ao invés do médico explicar que aquele senhor tem uma cirrose em decorrência da bebida (explicando o que aconteceu com o corpo do paciente, o que o fígado faz, o que ele deixou de fazer e porque é importante tentar parar com o vício), escolhem o caminho mais “fácil”, apenas avisam que tem um “problema no fígado” e o que é pior, muitas vezes condenam os hábitos do paciente, mesmo de forma inconsciente. Mantendo exatamente aquela relação distante, em que o paciente é literalmente “passivo”, ignorando a cultura, as vivências, e os pensamentos daquela pessoa.

Vejo, infelizmente, muito “salto alto” na medicina, inúmeras vezes, centra-se mais a atenção no médico do que na pessoa que está sendo assistida. Importam-se mais com a rapidez do diagnóstico, com o quão bons são na hora de fazer uma cirurgia e o quanto são respeitados pela comunidade médica. Talvez, nesse contexto, seja importante tirar a “armadura” do jaleco branco e saber que os pacientes, não são simplesmente quadros que vamos colocando nossas impressões, fazendo nossos diagnósticos e impondo “nossos” tratamentos. E sim, o ator principal deste grande palco é o paciente e nós, estudantes ou médicos, somos apenas os coadjuvantes daqueles que possuem vida, pensamentos, cultura, tabus, crenças, verdades e joelhos... Apenas, coadjuvantes.

Mayara Floss

Contos no Cardápio Literário do 11° Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade


Estava pensando muito no que escrever nestas linhas do blog sobre os contos que foram publicados na belíssima edição do "Cardápio Literário" do 11° Congresso Brasileiro de Medicina de Família e Comunidade que ocorreu em Brasília. Primeiro agradecer a divulgação e apoio dos colegas, universidade, amigos e familiares para a votação dos contos e a valorização dessa outra faceta que cultivo no meu dia a dia (a escrita) que foge ao academicismo da universidade. Os olhos ou joelhos que coloco nos contos acompanham-me nas enfermarias, Unidades Básicas de Saúde e onde a medicina me acompanha (todos os lugares). Postarei meus contos aqui para dividir um pouco dos meu olhar nessa terra rica e árida ao mesmo tempo da medicina.

Feliz,

Mayara Floss

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Saudades


Saudades não tem espaço
Mas ocupa
Saudades não tem corpo
Não tem pernas
Não tem braços
Mas se enrosca
Abraça e envolve
E só podemos ser embalados
Enquanto o tempo passa

Mayara Floss

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Nós


Ah se eu não procurasse
Tantas rimas, e tantos nãos
Por isso me abrace
E tantas diferenças ficam a mão

Porque tanta explicação
Se tanta matemática
Se perde na razão
A nossa algebra não é linear

Atrás da porta estavamos nós
Escondidos sem explicar
Se de tanto poematizar
Nos perdemos em tantos nós

Ah se eu soubesse
Que tanto medo de amar
O que passa nesses olhos
Talvez eu veja este mar

Talvez quisesse
Perdoar esse pecado
De me perder em teus braços
E descansar ao seu lado

Ah dizem que andamos sós
E de tanto amanhecer
Falta um pedaço de nós
Para o anoitecer

Porque tanto eu
Se vejo nossos dedos enrolados
E os cabides misturados
de vestidos e sapatos alinhados

Ah se acreditasse em destino
tudo ficaria mais fácil
Porque assim desacredito
Mas fico com os teus lábios

Se o que resta é partir
O longe nunca é distante
A saudades é o instante
De repousar no ombro teu

Acho que ando
no tempo do quando
Para te encontrar
E para deixo os dias passar

E o pronome da primeira pessoa
Fica pelo de terceira
Porque pessoalmente amar
não cabe em um só

Mayara Floss

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Passar


Nós não vivemos o passado
Revivemos o passado
E permeamos pela incerteza do se
e a desventura do quase
Criamos o medo de arriscar
Porque (re)vivemos o passado
E criamos as verdades -
cheias de mentira
E o medo de errar
Na imperfeição humana de querer
acertar sempre

Somos o eterno achar
Assim,
A vida passa
E passamos no monólogo do eu
Encenamos a normalidade do ser
E quase vivemos hoje

Mayara Floss

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Anatomia e borboletas


Texto publicado no jornal Glasgow 15

Às vezes a mecanicidade do sistema nos impede de ver além do exposto. Por exemplo, na secção transversal medula espinhal é possível ver uma borboleta da espécie Papilionidae, sendo visível até as raízes dorsais saindo das asas da borboleta.

Frequentemente esquecemos-nos das cortinas que se abrem diante dos nossos olhos. Aprendemos os cornos dorsais, ventrais, sulcos, funículos, fascículos. Porém, não vemos as borboletas. Não vemos o paciente sim os sintomas, sinais, o quão interessante ou banal é o que se desdobra na frente dos nossos olhos. Esquecemos-nos das borboletas.

Afinal, as borboletas são insignificantes frente ao mundo de conhecimento que se desdobra diariamente na faculdade. As provas, os livros, a cobrança e a responsabilidade – elas servem apenas para caracterizar a medula espinhal e não mais do que isso, não importa se passam na nossa frente ou então preferimos pegá-las e alfinetá-las para a exposição de todo o nosso conhecimento.

Os feixes nervosos são mais importantes que as asas e aprendemos a prender nossos pés no chão. Passamos a colecionadores não só de borboletas, mas de diagnósticos, olhares microscópicos, macroscópicos, análises, listas de sintomas. E não sentimos as asas batendo ao nosso redor, ignoramo-las, é mais fácil não ver as borboletas. Não sentir os olhos delas, a busca delas pelos nossos olhos – apenas classificamos.

Já temos que fazer tanto, não? Para que ainda perder nosso tempo olhando ao redor e seguindo as asas, isso é insignificante para o andar da vida. E meus olhos vão se tornando pequenos para ver além da metodologia-aplicação. Porém, às vezes, a borboleta negra turva nossa visão com suas asas e paramos para sentir a vida que pulsa em nós, ao nosso redor e que perdemos o voo daquelas asas - embora a lógica prefira não se envolver, não sentir, não pensar muito nessas “coisas” , é mais fácil.

Facilidade por facilidade, vamos nos tornando apenas jalecos brancos – símbolos de assepsia, limpeza e “superioridade”. Cortamos lentamente nossas asas, deixamos de voar e voltamos a ser apenas lagartas listradas famintas por análises e assustadoras. Impomos medo e despertamos o casulo dos nossos pacientes, para proteger-se da nossa fome.

Embora, tudo pareça muito assustador sempre podemos nos metamorfosear e deixar as asas baterem para que possam plainar suavemente sob a vida. Os ambientes de recuperação e cura estão repletos de lagartas de jaleco branco e acabam convivendo com casulos, retraídos. Depende do profissional-borboleta saber pegar esses casulos e promover a melhora em borboletas que alçaram o voo ou apenas reforçar as paredes do casulo. Precisamos das borboletas, quem sabe podemos começar vendo-as na anatomia e depois todos terão tempo para (re)abrir as próprias asas.
Mayara Floss

domingo, 5 de junho de 2011

O que não escrevi...


O que não escrevi...

Não cabia nessas linhas,
tinha mais espaço nos meu olhos
Ficava margeando o rio
bem no meio
É tão simples que os poetas
ficariam envergonhados
E tão humilde que o alfabeto torna-se
uma elite de sentimento
Ficou preso com um clips
nas páginas da minha vida
Contornou todas as regras e letras
porém, sem voz no papel


As palavras não escritas
São um berço para a alma

Mayara Floss
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